Uma explosão do número de casos de dengue levou quatro estados e o Distrito Federal a decretar situação de emergência nas últimas semanas. A doença é uma velha conhecida dos brasileiros, mas as estatísticas deste começo de ano mostram um comportamento diferente de 2023, quando o país registrou o maior número de notificações.
Somente em janeiro, houve um aumento de 270% do número de casos, na comparação com o mesmo mês de 2023, segundo dados do Ministério da Saúde.
A secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, Ethel Maciel, afirmou na sexta-feira (9) que o país pode chegar a 4 milhões de diagnósticos de dengue neste ano, o que seria um recorde — em 2023, foram 1,6 milhão.
O médico infectologista Rivaldo Venâncio da Cunha, pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e membro dos Grupos Assessores Técnicos para Dengue e para Chikungunya da Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), braço da OMS (Organização Mundial da Saúde) no continente, estuda a doença no Brasil há quase quatro décadas e afirma que “houve uma antecipação da onda que era esperada de dengue em pelo menos dois meses”.
Ao R7 Entrevista, o especialista classifica o momento atual como “um cenário em ascensão”, ressalta que uma epidemia de dengue é “quase impossível” de ser freada, mas que as ações do poder público e da população podem evitar de maneira significativa muitas mortes.
R7 Entrevista — Você já tinha visto algum cenário parecido em algum ano em relação ao que estamos vivendo agora?
Rivaldo Venâncio da Cunha — No ano de 2007, que envolveu muito o Rio de Janeiro, foi mais dramático. Nós não tínhamos uma rede de atenção primária como temos hoje, não se tinha o conhecimento acumulado como temos hoje, e houve muitas, muitas mortes naquele período aqui no Rio de Janeiro. Foi quando se instituiu pela primeira vez as tendas para fazer a hidratação de pessoas com dengue.
Dengue é uma doença que pode ficar grave, a ponto de matar a pessoa, mas cujo tratamento é simples, é água. Solução fisiológica é água com sal. Não tem grandes tecnologias para tratar dengue, não tem que importar um medicamento que não tenha no Brasil. Raramente precisa de um suporte de UTI. Então, na ampla maioria, pelo menos 90%, 95% dos casos de dengue são tratados com água e repouso.
Nos últimos dias, vimos Minas Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Acre e Goiás decretarem emergência por causa do aumento do número de casos de dengue. Outros estados, como São Paulo, por exemplo, montaram comitês para monitorar a situação. Qual é, na sua visão, o cenário da dengue no Brasil neste momento?
A meu ver, é um cenário em ascensão, muita coisa ainda está por vir. Por exemplo, a dengue na região Nordeste. Tradicionalmente, o período chuvoso na região Nordeste é mais tardio do que no Centro-Oeste e no Sudeste. Praticamente não tem casos de dengue nos estados do Nordeste, mas ainda vai chegar, infelizmente.
O ano passado foi recorde em número de casos de dengue. Este ano pode superar 2023?
Eu creio que sim, infelizmente. Estamos na primeira semana de fevereiro com 345 mil casos no Brasil todo. Há em média uma semana de atraso nos bancos de dados. Podemos falar já em mais de 400 mil casos, uma média de 100 mil casos por semana.
Ano passado, tivemos 1,6 milhão de casos notificados. Se você considerar que você pode colocar uns cinco casos não notificados para cada notificado, estamos falando em cerca de 8 milhões de pessoas acometidas.
Eu diria que 2024 está começando do ponto de vista da dengue. Muito provavelmente, no final de março e até o final de abril, continuaremos preocupados e tendo dores de cabeça com a dengue. Se vai ser o ano com o maior número de casos registrados, com o maior número de mortes, não tenho como comentar. Mas boa parte disso, principalmente as mortes, é possível reduzir.
Há algo que possa ser feito agora para frear o avanço da dengue no Brasil?
São poucas as doenças cujas epidemias são anunciadas com tanta antecedência quanto a dengue. Temos que aprender a nos preparar com a devida antecedência para enfrentar essas epidemias, sobretudo com olhar de redução da quantidade de mortos.
Uma vez instalada uma epidemia de dengue, o curso dela é difícil de ser modificado. É quase impossível você bloquear uma epidemia de dengue em curso. Porém, é relativamente fácil salvar vidas durante uma epidemia de dengue, desde que se organize a rede [de saúde] e se trabalhe adequadamente.
É possível modificar alguma coisa no Nordeste? Claro. Lá não começou ainda. Desde a organização da rede com a devida antecedência para reduzir ao máximo as mortes, até organizar a rede para reduzir o sofrimento da população. E também destruir o maior número de focos de proliferação do mosquito. Essa faxina tem que fazer agora.
No ano passado, o pico da dengue no país ocorreu entre 7 e 14 de abril. Com base nisso, é possível imaginar que o pior ainda está por vir?
As estatísticas estão mostrando que houve uma antecipação da onda que era esperada de dengue em pelo menos dois meses. No ano passado, a semana em que houve mais casos de dengue foi a semana [epidemiológica] 15. Agora, na semana 4, já está quase perto do que foi a semana 15.
Isso significa que a coisa vai degringolar? Não necessariamente. Pode ser que essa onda se iniciou antecipadamente, mas também que a sua finalização seja antecipada. Vamos esperar para ver.
O que provocou essa antecipação da onda?
Foi um conjunto de fatores: a temperatura quase que extrema que tivemos ali por outubro, novembro, um calorão antes do verão tradicional; uma certa antecipação do período chuvoso em algumas áreas ou pelo menos uma quantidade de chuva generosa; a mudança da circulação de sorotipos — em algumas localidades estava a dengue tipo 1, e agora observamos o tipo 2, em outras localidades chegando tipo 3 e até mesmo tipo 4. O sorotipo 3 já tinha pelo menos 15 anos sem epidemia no Brasil, ou seja, uma boa geração está circulando pelo país sem anticorpos contra o tipo 3 da dengue.
Além da temperatura, da chuva e da imunidade das pessoas por conta do sorotipo circulante, nós temos um passivo ambiental que é secular, não nasceu há três meses. Temos que resolver essa questão da coleta do lixo urbano, do fornecimento de água regular para o uso doméstico.
É muito comum que quando falte água em um lugar, no dia em que chega água, a população vai armazená-la em quaisquer objetos possíveis. Muitas vezes, a vedação desse objeto não é adequada, e ele se transforma em um potencial foco de criação e proliferação do Aedes aegypti.
Em relação ao calor extremo e às chuvas, existe influência do El Niño no cenário atual da dengue no Brasil?
Tem, mas não é determinante. Essa chuva precisa parar em algum objeto. Se nós cuidamos do meio ambiente adequadamente, coletamos o lixo, não o jogamos em qualquer lugar, cuidamos dos nossos jardins, essa chuva do El Niño ou de qualquer outra coisa não tem onde ficar parada. Em correnteza e em enxurrada não se cria Aedes.
A situação da dengue no Brasil está fora de controle?
Eu não vejo nenhum caos, um descontrole total, estabelecido em localidade nenhuma — talvez o Distrito Federal, que está em uma situação mais delicada. Não vejo, por exemplo, guardadas as devidas proporções, como quando assistimos àquele caos em Manaus, durante a pandemia, por falta de oxigênio e tal. Eu não vejo algo, nem de longe, parecido.
Essa explosão do número de casos de dengue vai colocar à prova a rede de atenção primária?
A rede de atenção primária do Sistema Único de Saúde já se mostrou para lá de resolutiva depois da pandemia [de Covid-19]. Agora, precisa de organização. No caso da dengue, a enfermagem tem um papel determinante na evolução desses quadros, porque o primeiro contato é com a enfermagem, que vai ver os sinais vitais, ver se aquela pessoa está desidratada, já pode iniciar a hidratação horas antes do atendimento médico.
Geralmente, tem um hiato entre a entrada na unidade de saúde e a consulta médica. É fundamental que esse doente com suspeita de dengue seja acolhido antes. Temos observado que a pessoa espera uma, duas, três horas e vai embora. Aí ela volta três, quatro dias depois [com um quadro] gravíssimo.
A organização da rede, o acesso das pessoas e o acolhimento dessas pessoas que procuram a rede de atenção é determinante na quantidade de óbitos. Geralmente, a gente vê uma muvuca. Você chega às unidades de pronto-atendimento, ali tem gente com dedão do pé esfolado, tem gente que caiu da bicicleta, gente que caiu da moto, gente que está com suspeita de infarto, gente que está com pico de pressão arterial elevada e tem [casos] suspeitos de dengue também.
Então, a organização do acesso à fila… suspeitos de dengue é uma fila à parte, porque dengue chegou e não substituiu nenhuma das outras doenças, nenhum dos outros agravos existentes, ela se soma. Tudo o que acontecia antes, infelizmente, continua acontecendo, mais a dengue.
O que estamos vivendo no Brasil é uma exclusividade daqui ou se repete em outros países?
Nessa dimensão, nessa proporção, não [se repete]. Tem dengue no Paraguai, na Bolívia, na Venezuela, no Panamá, em Honduras, em Cuba, muito menos, mas tem também, em El Salvador, no México tem muito, mas na proporção que tem no Brasil, não. Mais ou menos 70% dos casos de dengue nas Américas acontecem no Brasil.
A ministra da Saúde, Nísia Trindade, afirmou que a chegada da vacina Qdenga, da farmacêutica japonesa Takeda, ao SUS traz uma esperança, mas que não é a solução do problema. Quais seriam os passos necessários para o Brasil em relação ao enfrentamento da dengue?
Neste momento, o que o laboratório disponibilizou tem que ser usado para vacinar. É pouco, mas é melhor do que nada.
Infelizmente, neste momento, a capacidade de produção da vacina ainda é restrita, mas ela será ampliada. Neste momento, o cidadão e a cidadã precisam dar a sua contribuição, cuidar do seu quintal, da sua casa, não deixar qualquer objeto, independentemente do tamanho deles, que possa acumular água, conversando com os vizinhos e cobrando que o poder público faça a sua parte.
As autoridades municipais têm que manter as praças limpas, os pátios das escolas limpos, os pátios das unidades de saúde. Em todos os espaços públicos precisa ser feito esse trabalho que o indivíduo também está fazendo. O exemplo tem que partir da autoridade.
Agora, é preciso fazer um recorte que a vacina para a dengue é uma conquista para a humanidade, temos que celebrar. Na realidade, são quatro vacinas [em uma], uma para cada sorotipo do vírus. Os primeiros pesquisadores que tentaram obter um vírus atenuado que servisse como uma vacina remontam à década de 1940.
A principal equipe e a primeira que se debruçou sobre essa tentativa trabalhou vários anos, depois desistiu e foi estudar poliomielite. O mesmo doutor Albert Sabin da vacina da poliomielite, a equipe dele descobriu os dois tipos do vírus da dengue, e ele trabalhou muitos anos tentando a vacina para a dengue.
O Instituto Butantan publicou, em 31 de janeiro, um artigo no The New England Journal of Medicine em que demonstra cerca de 80% de eficácia na vacina que desenvolve contra a dengue. A instituição pretende obter o registro na Anvisa no segundo semestre deste ano, com uma previsão de entregas ao SUS no ano que vem. Ao mesmo tempo, a Fiocruz negocia com a Takeda a possibilidade de produzir a vacina japonesa em Bio-Manguinhos, embora ainda sem qualquer definição sobre isso. A autossuficiência na fabricação de imunizantes contra a dengue é algo factível nos próximos dois anos?
[É possível] Não só a autossuficiência na vacina para a dengue, como a autossuficiência em uma gama de produtos fundamentais para a saúde da população, desde que exista política pública estimulando aquilo que chamamos de complexo econômico industrial da saúde, com todas as parcerias necessárias.
É importante que o poder público, que o Brasil como um todo, resolva se desenvolver e superar essa crônica dependência tecnológica que nós temos. Durante a pandemia, importávamos luvas, máscaras, hastes para fazer coleta de secreção nasal, tudo. Precisamos de uma política industrial desenvolvimentista, para desenvolver o país. É possível não só com a vacina para a dengue, como para as outras também. Mas é preciso estímulo contínuo da nação, do governo federal.