Roncam os motores de Cadillacs ao cercar um set de filmagem na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, que reproduz uma cidadezinha do sertão nordestino na década de 1950. Com exceção dos veículos e de uma loja posicionada bem ao centro, porém, tudo ao redor é falso.
Painéis de LED fazem as vezes das paisagens mais distantes, com lojinhas, pessoas e cachorros criados digitalmente. Passeando diante deles, Selton Mello está caracterizado, mas nem por isso gera estranheza -suas vestes são as de Chicó, um dos personagens mais conhecidos do cinema nacional e que retorna em “O Auto da Compadecida 2”.
Ele está mais velho, é claro. Vinte anos se passaram e Chicó trocou o rosto liso e pueril por uma barba a fazer, fios brancos e o olhar maduro. Seu parceiro de cena, João Grilo, interpretado por Matheus Nachtergaele, também está mudado, mesmo que ainda inconfundível.
Gravado no fim do ano passado na capital fluminense, o longa retoma, 24 anos depois, o universo concebido por Ariano Suassuna -mas com trama, nesta sequência, criada do zero. Guel Arraes volta à direção, agora acompanhado de Flávia Lacerda, mais chegada aos trabalhos televisivos.
“Esta sequência é movida por um desejo artístico. Queríamos nos pôr à prova de novo, agora mais maduros”, diz Nachtergaele, com o olhar cansado pelo longo dia de gravação, mas nem por isso menos empolgado.
“Nos questionamos se queríamos fazer, se tínhamos o que aprender com essa experiência, e sim, porque lá estávamos muito jovens, ainda nos tornando artistas. É legal, então, voltar para esses personagens agora, é como tomar a segunda dose de uma vacina muito importante.”
Sentado ao seu lado, Mello concorda. “Hoje nós somos dos lares brasileiros. Nós frequentamos os domingos de todas as raças, etnias, classes sociais. Nós não damos um passo, em qualquer lugar do Brasil, sem nos perguntarem de Chicó e João Grilo, se o meu amigo Matheus [Nachtergaele] está bem. Nos tornamos parte da família dos brasileiros, e é muito bonito reviver isso.”
Com pouca história divulgada, “O Auto da Compadecida 2” vai se debruçar, novamente, sobre a amizade dos dois protagonistas, num sertão ainda miserável, temente a Deus e marcado pela violência do cangaço.
Enrique Diaz, companheiro do tirano Severino de Aracaju no original, retorna, bem como Virginia Cavendish, que com a personagem Rosinha deixou a vida de mordomias para trás para viver com Chicó.
Taís Araujo assume a Nossa Senhora de Aparecida que se tornou emblemática com Fernanda Montenegro, em 2000, e Eduardo Sterblitch surge no set de filmagem com metade do rosto coberto por um bigode, num lustroso terno branco, tentando empurrar eletrodomésticos para quem visita sua loja. Humberto Martins, Fabiula Nascimento, Luis Miranda, Juliano Cazarré e Luellem de Castro completam as adições ao elenco.
Tido como uma espécie de unanimidade do cinema nacional, “O Auto da Compadecida” continua querido por quem viu o filme à época ou mesmo por quem o descobriu nas inúmeras reprises na televisão nas últimas duas décadas. É um longa que, com sua mensagem de irmandade, chega em boa hora, após as divisões todas que o Brasil presenciou, acreditam Mello e Nachtergaele.
“É um carinho para todos recebermos juntos, um ‘abraçaço’ do Caetano [Veloso]. Todo mundo cabe nele”, diz o segundo ator.
Dessa forma, “O Auto da Compadecida 2” é uma aposta forte do cinema nacional neste ano, e mais uma que vai retomar sucessos de outrora, como “Ó Paí, Ó 2” fez no ano passado, “Nosso Lar 2” tenta fazer a partir desta semana e, em breve, “Estômago 2” também arriscará.
Além da trama, o que muda agora é a tecnologia. Se antes o filme foi gravado na Paraíba, dando autenticidade ao sertão nordestino onde se passa, a opção por filmar em estúdio, no Rio de Janeiro, veio acompanhada dos avanços tecnológicos das últimas duas décadas.
Pela primeira vez, um longa brasileiro está usando os painéis de LED que contornam os cenários, uma tecnologia ainda recente, mas que vem substituindo as telas verdes e o CGI em Hollywood. Com ela, é possível criar paisagens de forma virtual e ajustar detalhes como luz e quantidade de figurantes durante a filmagem -e o resultado já aparece na hora, não na pós-produção. É um ambiente digital semelhante ao de um videogame em realidade virtual, que segue os mesmos mecanismos.
“Eu fiquei receoso com essa decisão, mas hoje eu acho que foi acertada. Criamos um lugar mágico, com o nosso calor, o calor do Ariano, do sertão, na frieza de um estúdio”, diz Mello. “É bem teatral, e isso é muito nobre, porque esta é uma peça de teatro. Estamos sempre cercados por cenário, mesmo que eletrônicos, mas nunca na tentativa de estarmos no sertão”, completa Nachtergaele.
“O Auto da Compadecida 2” ainda não tem data confirmada de estreia, mas a expectativa é que o filme, produzido pela Conspiração e H2O Films, chegue aos cinemas em dezembro deste ano.
O jornalista viajou a convite da Conspiração e H2O Films.