Saquinhos de compota de maçã com sabor de canela, vendidos em supermercados e nas lojas da rede Dollar no ano passado, envenenaram centenas de crianças norte-americanas com doses extremamente altas de chumbo. Preocupados, os pais estão atentos a possíveis sinais de danos cerebrais, convulsões e atrasos no desenvolvimento dos filhos.
A Food and Drug Administration (FDA), órgão que controla alimentos e remédios nos Estados Unidos, simplesmente reproduziu o que foi declarado por investigadores equatorianos: disse que um moedor de especiarias, entre elas a canela, foi, provavelmente, o responsável pela contaminação. E acrescentou que o rápido recolhimento de três milhões de saquinhos de compota de maçã protegeu da contaminação o abastecimento de alimentos.
O “The New York Times” e jornalistas de saúde da organização sem fins lucrativos The Examination obtiveram centenas de páginas de documentos e os juntaram às entrevistas feitas com funcionários do governo e de empresas em vários países. Esse material mostra que, nas semanas e nos meses anteriores ao recolhimento, a compota de maçã contaminada atravessou uma série de pontos de controle de um sistema de segurança alimentar destinado a proteger o consumidor norte-americano.
Os documentos e as entrevistas oferecem uma descrição clara daquela que é considerada a mais generalizada exposição tóxica em alimentos comercializados para crianças pequenas em décadas. Crianças em 44 estados comeram a compota de maçã contaminada. Algumas unidades continham chumbo em níveis extraordinariamente elevados.
Repetidas vezes, a canela contaminada não foi testada nem descoberta, resultado de uma lei de segurança alimentar que dá às empresas, no país e no estrangeiro, ampla liberdade para decidir quais toxinas procurar e testar. É também o que se pode esperar de uma agência sobrecarregada de atribuições, como a FDA. “É incrível que uma catástrofe assim tenha ocorrido. Em grande parte, o sistema regulador do abastecimento alimentar se baseia, simplesmente, em honra”, afirmou Neal Fortin, diretor do Instituto de Leis e Regulamentações Alimentares da Universidade Estadual do Michigan.
Originária do Sri Lanka, a canela foi enviada ao Equador para ser transformada em pó. Segundo a FDA, foi provavelmente nesse estágio que o produto foi contaminado com cromato de chumbo, pó que pode ser usado ilegalmente para tingir ou aumentar o volume da especiaria.
A canela moída foi, então, vendida, ensacada e novamente vendida para uma empresa chamada Austrofood, que a misturou nas compotas de maçã e as enviou embaladas em saquinhos para os Estados Unidos. O produto foi vendido sob a marca WanaBana em várias lojas.
A Austrofood não testou a canela nem a compota de maçã contaminada em busca de chumbo antes de enviá-la para os Estados Unidos. A empresa disse que se baseou em um certificado apresentado por um fornecedor que afirmava que a canela era praticamente isenta de chumbo, de acordo com os documentos. Em um comunicado, o fornecedor, Negasmart, não discutiu essa certificação, mas garantiu ter cumprido todos os regulamentos e padrões de qualidade.
A FDA pode inspecionar empresas alimentares estrangeiras que fazem remessas para os Estados Unidos. Mas, com as importações de alimentos atingindo níveis recordes, em 2022, as inspeções internacionais ficaram muito aquém das metas estabelecidas por lei. Os inspetores americanos não visitavam a Austrofood havia cinco anos, como mostram os documentos.
“As empresas têm responsabilidade. Precisam tomar medidas que garantam que os produtos que fabricam não estão contaminados com níveis perigosos de metais pesados. O trabalho da agência é ajudar a indústria a cumprir essas metas e responsabilizar aqueles que não cumprem os requisitos apropriadamente”, declarou em um comunicado Jim Jones, o principal responsável pelo setor de alimentação da FDA.
A FDA afirma que não tem autoridade para investigar a cadeia de abastecimento internacional. Os documentos mostram que o governo equatoriano tinha autoridade, mas não capacidade. Os responsáveis equatorianos nunca testaram a presença de toxinas na canela e, quando a FDA pediu ajuda para fazer a inspeção, quase metade do equipamento de laboratório do governo estava quebrado, disse Daniel Sánchez, chefe da agência de segurança alimentar do Equador.
As auditorias de segurança privadas, encomendadas por importadores norte-americanos, deveriam fornecer mais uma camada de proteção. Mas as auditorias, geralmente, procuram apenas por situações de perigo que os próprios importadores identificam previamente.
Nenhum dos importadores informou se considerava o chumbo um risco ou se fez testes para detectá-lo. Não está claro quais medidas tomaram, se é que tomaram alguma. E ninguém bloqueou a compota de maçã. Os documentos mostram que um auditor deu ao fabricante de compota de maçã uma classificação de segurança A+, em dezembro, quando as crianças norte-americanas já estavam sendo envenenadas.
A FDA tem poder para testar alimentos que chegam à fronteira. Mas não há indicação de que alguém tenha testado a compota de maçã quando ela chegou aos portos de Miami e Baltimore. De fato, os inspetores nos Estados Unidos efetuam hoje cerca da metade dos testes que faziam há uma década. A FDA declarou que vai analisar o incidente e verificar se precisa pedir ao Congresso maiores poderes para prevenir que, no futuro, surtos como esse não ocorram.
Os responsáveis pela regulação do setor, em nível federal, há anos alertam sobre o risco de adulteração de ingredientes alimentares. As mudanças no sistema de segurança alimentar nasceram de um escândalo, no fim dos anos 2000, na China. Usou-se um pó de melamina barato e tóxico em vez de proteína em fórmulas para bebês e alimentos em pó para animais de estimação. Seis bebês na China e centenas de cães nos Estados Unidos morreram.
À medida que novas leis sobre testes em alimentos importados tomaram forma, depois do ocorrido, lobistas do setor de supermercados e de empresas alimentares trabalharam para enfraquecê-las. Scott Faber, antigo lobista da Associação dos Fabricantes de Produtos de Mercearia, lembra-se de ter rejeitado propostas para que se fizessem mais amostras, testes e relatórios. “Nosso argumento, na época, era que muitos produtos seriam destruídos se fossem necessários mais testes e amostragens. É evidente que os bebês e as crianças pequenas pagaram um preço alto pelo sucesso desse setor”, afirmou Faber, que, atualmente, é alto funcionário do Grupo de Trabalho Ambiental, no qual defende uma supervisão mais rigorosa do sistema de abastecimento alimentar.
Heather Garlich, porta-voz da Associação da Indústria Alimentícia, não quis comentar o recolhimento da compota de maçã. Apenas disse: “Os EUA são líderes globais em segurança alimentar em razão da forte supervisão governamental, das parcerias público-privadas rigorosas e das iniciativas industriais.”
A política de segurança alimentar é uma questão de amostragem. É impossível para os agentes da FDA abrir todas as caixas importadas de produtos ou especiarias e testar todos os contaminantes possíveis. Cada nova exigência atribuída às companhias acrescenta custos aos alimentos. Mas os críticos do sistema, como Faber, ressaltam que a FDA cedeu demasiada autoridade de supervisão às empresas.
A Lei de Modernização da Segurança Alimentar, sancionada em 2011 pelo presidente Barack Obama, deu à FDA poder para recolher alimentos, rastrear produtos e descartar suprimentos de empresas estrangeiras que rejeitem as inspeções dos norte-americanos. Uma mudança importante foi exigir que os importadores auditassem seus fornecedores. Entretanto, como essas companhias agiram durante o incidente da compota de maçã ainda não está claro. Dados recolhidos pela FDA mostram que milhares de importadores não auditam adequadamente.
E a lei não chegou nem perto de colocar a FDA, que supervisiona alimentos e produtos frescos de longa duração, no mesmo nível do Departamento de Agricultura, outro importante órgão regulador alimentar. Para dar uma ideia das diferenças entre os órgãos, os inspetores agrícolas trabalham dentro de todas as fábricas americanas de processamento de carne e permitem importações desse produto apenas de países que têm um sistema de segurança rigoroso.
Em 2022, a FDA pediu ao Congresso autoridade para estabelecer limites para metais pesados e exigir que os fabricantes de alimentos para bebês os testassem. O Congresso nada fez. Essas mudanças poderiam ter evitado o envenenamento que aconteceu no ano passado.
A compota de maçã contaminada poderia ter passado despercebida por mais tempo se não fosse uma família da Carolina do Norte. No início do verão passado, Nicole Peterson e Thomas Duong ficaram alarmados com os níveis de chumbo no sangue dos filhos pequenos, revelado em um exame de rotina. Em poucas semanas os níveis duplicaram.
Peterson disse que o casal trabalhou com o departamento de saúde local na tentativa de determinar o que estava prejudicando os meninos. “Não estávamos dormindo e não comíamos, e isso estava nos deixando loucos”, contou Peterson. Ela e o marido processaram a rede Dollar Tree, onde compraram a compota de maçã, e a WanaBana, distribuidora norte-americana liderada por executivos da Austrofood.
Um porta-voz da Dollar Tree declarou que a empresa está comprometida com a segurança dos produtos que vende. A Austrofood disse que confiou na certificação de seu fornecedor e no fato de nenhum dos seus outros produtos ter sido recolhido.
A filha de três anos do casal, menina forte e inteligente que adora vestidos coloridos e esmalte de unha, tinha um nível de chumbo no sangue de 24 microgramas por decilitro, quase sete vezes maior que o nível de preocupação estabelecido pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, em inglês). Seu irmão mais novo, criança descontraída que adora caminhões barulhentos e música dançante, atingiu o nível 21. Investigadores da área de saúde pública revistaram casas e creches, mas não encontraram a fonte de contaminação. Quando os exames de sangue dos pais voltaram ao normal, começaram a suspeitar de um alimento que só as crianças comiam: saquinhos de papel-alumínio com purê de maçã e canela. As autoridades de saúde da Carolina do Norte testaram o material e encontraram níveis de chumbo extraordinariamente elevados. Foi o que fez a FDA agir.
No fim de outubro, a Austrofood fez o recolhimento de milhões de embalagens de compota de maçã. A FDA disse acreditar que essa medida eliminou a canela contaminada do abastecimento alimentar dos EUA. O CDC estima que mais de 400 bebês e crianças pequenas tenham sido envenenados. O resultado médio do teste nos saquinhos ficou seis vezes acima do nível encontrado nos canos de chumbo na crise hídrica, há uma década, em Flint, no Michigan. A exposição em Flint foi de longo prazo e seus efeitos se revelaram difíceis de quantificar. Contudo, anos depois, o número de estudantes da cidade qualificados para entrar na educação especial dobrou.
Este mês, a FDA afirmou que os investigadores equatorianos acreditam que a canela foi provavelmente contaminada por Carlos Aguilera, que dirigia a fábrica de especiarias. Como mostram os documentos, a agência de saúde equatoriana apresentou uma queixa administrativa contra Aguilera, alegando que ele operou sem autorização e que utilizou máquinas desreguladas, o que aumentou o risco de impurezas. A reclamação está pendente.
Além disso, as autoridades equatorianas recolheram a canela embalada que estava com compradores dos produtos de Aguilera. Esta recebeu resultado positivo para chumbo, de acordo com os relatórios de inspeção e com as entrevistas feitas para esta matéria. Mas os documentos mostram que os investigadores não encontraram a canela contaminada na fábrica de Aguilera. Em entrevista a repórteres, ele negou a adição de cromato de chumbo.
A Austrofood não é explicitamente obrigada a testar a presença de chumbo em seus produtos. De acordo com os regulamentos da FDA, as empresas devem apenas identificar prováveis riscos à segurança alimentar e desenvolver planos para enfrentá-los. A Austrofood tinha um plano, mas o chumbo não estava entre os riscos previstos, de acordo com os registros da FDA. Depois do envenenamento por chumbo, a FDA intimou a Austrofood por não identificar o chumbo como um perigo, como mostram os registros da agência.
A indústria não tem obrigação de se policiar inteiramente. A lei de segurança alimentar exige que a FDA aumente a supervisão no exterior e efetue a cada ano cerca de 19 mil inspeções alimentares internacionais.
A agência nunca chegou perto dessa meta. No ano passado, os documentos mostram que os auditores fizeram cerca de 1.200 inspeções no estrangeiro, visitando menos de um por cento dos fabricantes internacionais de alimentos registados pela FDA.
Quando o Gabinete de Responsabilidade Governamental (GAO, em inglês) sinalizou o problema, em 2015, a FDA rebateu afirmando que seu financiamento era insuficiente e questionou “a utilidade de fazer tantas inspeções”. O GAO, recentemente, informou que ainda espera que a FDA diga qual é o número de inspeções que considera apropriado.
As autoridades dos EUA inspecionaram a Austrofood em 2019. Não está claro que tipo de testes fizeram, mas os registos comerciais mostram que a empresa não exportava produtos de canela para os Estados Unidos, pelo que se deduz que a especiaria provavelmente não foi um fator presente na inspeção. Os auditores não encontraram problemas que necessitassem de solução, mostram os documentos. Os inspetores só retornaram à Austrofood quase cinco anos depois, quando o envenenamento por chumbo foi descoberto.
Não há também registro de que a FDA tenha inspecionado a fonte original da canela, a Samagi Spice Exports, sediada no Sri Lanka. Nanda Kohona, diretora de marketing da Samagi, declarou que a empresa conduziu os próprios testes de verificação da presença de chumbo. Há outras companhias na cadeia de abastecimento de canela elegíveis para inspeções da FDA, mas não fazem remessas diretas para os Estados Unidos.
“A peça que falta é ter uma agência reguladora totalmente independente verificando o processo, entrando nos locais e fazendo inspeções diretamente”, afirmou Sarah Sorscher, diretora de assuntos regulatórios do Centro para Ciência de Interesse Público.
Peterson, a mãe da Carolina do Norte cuja persistência desencadeou a busca, disse que ficou aliviada quando a compota de maçã foi descoberta como sendo a fonte de chumbo. Sua família agora está observando atentamente se ocorrerão atrasos no desenvolvimento de seus filhos. Mesmo os baixos níveis de exposição ao chumbo em crianças têm sido associados à hiperatividade, a alterações de humor e a um déficit na leitura e nas competências sociais. “Só esperamos que nossos filhos estejam saudáveis e que possam permanecer saudáveis. Eles não deveriam ter de se preocupar com o que comem. Ninguém deveria.”
c. 2024 The New York Times Company
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