Ferido no olho por uma explosão, Oleksandr Radchuk, garoto ucraniano de 11 anos da cidade arrasada de Mariupol, aguardava em uma barraca enquanto soldados russos interrogavam sua mãe.
Os dois tinham sido detidos quando o centro portuário onde viviam sofreu um ataque prolongado das forças inimigas no início de 2022. Snizhana Kozlova ficou ausente durante uma hora e meia; quando os guardas a trouxeram de volta, ela o abraçou sem dizer palavra; a seguir, os assistentes sociais chegaram e se ocuparam dele.
“Estávamos chorando; eu não estava acreditando que iam me levar embora”, contou o garoto conhecido como Sasha, hoje com 13 anos, na presença da avó, Lyudmyla Siryk. Sua mãe foi presa e, há quase dois anos, ele não tem notícias do que foi feito dela.
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Sasha é uma das crianças ucranianas, entre milhares, separadas à força dos pais pelas autoridades russas nos primeiros estágios da guerra, que se aproxima dos dois anos de duração. Algumas ficaram feridas ou órfãs com os bombardeios maciços; outras, sem ter para onde ir e sozinhas, depois que os pais foram presos; e também há as que foram separadas dos pais, que acreditavam estar mandando os filhos para um acampamento de verão.
Segundo a verificação do governo ucraniano, mais de 19 mil foram transferidas para a Rússia ou para os territórios controlados por ela. Nos últimos meses, 387 em situação semelhante à de Sasha foram localizadas por parentes e levadas de volta para a família com a ajuda da instituição SOS Children’s Villages Ukraine, entre outras.
Seus relatos – e de seus familiares – estão ajudando as autoridades e os investigadores a entender a iniciativa russa de retirar os pequenos da Ucrânia, normalmente sob o pretexto de “resgatá-los” da zona de guerra, para transformá-los em inimigos da terra natal e legalistas russos. Reforçados pelas provas coletadas pelas organizações de crimes de guerra e direitos humanos internacionais e ucranianas, ficou comprovado que a estratégia foi proposital, premeditada e sistemática.
De acordo com os documentos russos a que o “The New York Times” teve acesso, reunidos e compartilhados pela ex-comissária de direitos humanos da Ucrânia, Lyudmyla Denisova, as autoridades da nação invasora fizeram uma operação de transferência em massa de crianças ucranianas que se encontravam em orfanatos e algumas escolas, com direito a escolta de soldados e policiais até os ônibus e as autoridades regionais acomodando-as e distribuindo-as para adoção temporária por famílias russas. Um decreto assinado por Vladimir Putin abriu caminho para a oficialização desse processo.
Poucas vezes na história bélica moderna se viu uma iniciativa de proporções e duração excepcionais como essa; de fato, os investigadores de guerra afirmam que a transferência forçada pode ser caracterizada como ato de genocídio, de acordo com a Convenção de Genebra. Apesar disso, o presidente russo e sua comissária para os direitos infantis, Maria Lvova-Belova, anunciaram a medida publicamente, como a se gabar da assistência humanitária às famílias do país invadido – e essas declarações se tornaram a base do mandado de prisão, ainda confidencial, emitido para ambos em março, pelo Tribunal Internacional de Crimes de Guerra.
Lvova-Belova chegou a escrever sobre as crianças e a postar fotos delas nas redes sociais em junho: “Esses pequenos, que até recentemente estavam se escondendo dos morteiros em porões em Mariupol, agora estão aproveitando as férias de verão.”
O “Times” foi até a Ucrânia para entrevistar mais de 30 que conseguiram voltar do país vizinho, sendo que muitas continuam traumatizadas pelos eventos.
Já nas primeiras semanas seguintes à invasão, as autoridades ucranianas começaram a denunciar o plano dos russos de recolher suas crianças – e, embora milhões tenham fugido do conflito, o governo agressor montou os chamados “acampamentos de triagem”, onde eram revistados os ucranianos originários da zona de batalha rumo ao território sob seu controle. Os suspeitos de ser combatentes eram detidos, e os civis, forçados a integrar um programa de reassentamento que os levaria para alguma cidade russa ou na porção ucraniana ocupada.
Foi em um desses núcleos que Sasha e a mãe foram forçados a se separar. Estavam abrigados em um hospital militar de campanha ucraniano instalado no subsolo da siderúrgica de Ilyich, em Mariupol, desde que o garoto foi ferido na explosão, capturados com as tropas de seu país quando as forças russas cercaram a área.
A avó de Sasha conseguiu localizá-lo em um hospital do território controlado só porque médicos compadecidos com o caso o anunciaram nas redes sociais. Quando finalmente conseguiu ligar, ouviu o menino implorar: “Me tira daqui, vovó.” Entre a burocracia e a viagem em si, foram mais de dois meses de calvário.
Em seis de outubro de 2022, as escolas de Kherson, do nada, anunciaram excursões para todas as crianças com destino à Crimeia, região ucraniana anexada à Rússia em 2014. Ao longo do verão, vários grupos fizeram a viagem de duas semanas – só que, com as condições de guerra da ocupação, poucos em Kherson sabiam que os pequenos não poderiam voltar para Kharkiv.
Alla Yatsentiuk disse que os filhos, Ivan, na época com nove anos, e Danylo, com 13, quiseram ir. Ao longo de vários dias em outubro, crianças e mais crianças se reuniam no porto fluvial de Kherson para pegar a chata que as levaria para a margem oriental, onde os ônibus as esperavam. “O porto ficava praticamente lotado”, relembrou Yurii Verbovytskyi, na época com 16 anos, ao voltar para casa, em Kherson, em setembro. Ele contou que só foi porque os amigos todos estariam lá.
Denys Berezhnyi, que tinha 17 anos, foi informado pelo diretor da escola que teria de ir. “Concordei para evitar causar problemas aos meus pais.” Em sete de outubro de 2022, centenas de jovens partiram. “Para as crianças que foram levadas ilegalmente, essa data vai ser lembrada para sempre”, completou.
Naquela manhã, Yatsentiuk acordou com um mau pressentimento. Ivan decidiu não ir, mas Danylo não parava de receber mensagens dos amigos que já estavam na Crimeia e ficou superanimado. No dia seguinte, foram para o cais e se depararam com uma verdadeira multidão de crianças, organizadas em grupos pelos supervisores.
Danylo partiu e, uma semana depois, Yatsentiuk recebeu o telefonema de um dos supervisores ucranianos do filho que o informou, sem nenhuma explicação, de que deveria buscá-lo e levá-lo para casa o mais depressa possível. No mesmo dia, as tropas russas começaram uma evacuação geral de tropas e civis em Kherson. “Enganaram os pais dizendo que era viagem de férias. Mentira! Era deportação, isso sim, sob o pretexto de ser diversão para as crianças”, acusou Yatsentiuk, referindo-se às autoridades russas.
Depois disso, tudo aconteceu muito rapidamente: o diretor da escola deixou o posto; os professores foram mandados de volta para Kherson, forçados a abandonar o cargo na Crimeia, enquanto as crianças foram informadas de que não poderiam voltar para casa por causa da guerra. Na Ucrânia, os pais e responsáveis ficaram sabendo que teriam de buscar os filhos pessoalmente; muitos o fizeram e se tornaram refugiados na Rússia. “Só voltei a ver Danya seis meses depois”, contou Yatsentiuk, usando o apelido do filho. Ela teve de tirar passaporte e viajar à Polônia, a Belarus e à Rússia para depois chegar à Crimeia e voltar com o jovem.
Por fim, ela o encontrou em uma instituição mental em seis de abril. A essa altura, a maioria dos amigos do rapaz já tinha se dispersado, levada para a Rússia pelos pais ou de volta para as áreas ocupadas da Ucrânia.
De acordo com organizações de pesquisa ucranianas e independentes, desde a anexação da Crimeia a Rússia pôs em prática uma campanha de “russificação” e doutrinação das crianças das áreas ocupadas.
O sistema de ensino russo há tempos é caracterizado pelo doutrinamento, pelo patriotismo e por um elemento de treinamento bélico, mas de uns tempos para cá os acampamentos na Rússia e na região ocupada do leste da Ucrânia vêm proliferando como parte do que os analistas dizem ser uma militarização da sociedade promovida por Putin. Nesses núcleos, as crianças ucranianas também usam uniforme e passam por um treinamento semimilitar, reforçando os temores de que o governo pretende usá-las como soldados contra a própria pátria.
Na época com 15 anos, Artem Hutorov e uma dúzia de colegas de classe foram retirados da escola em que estudavam, em Kupiansk, por soldados russos quando as tropas ucranianas se aproximavam da cidade, no ano passado, e levados da linha de frente para uma escola em Perevalsk, no interior da região ocupada. Ali tiveram de se alternar entre o uniforme verde camuflado e a versão branca dos cadetes navais. O garoto aparece até em uma foto do site da escola com o símbolo da força de ocupação russa – a letra “Z” – na manga da camisa.
Durante os meses que passou em um acampamento na Crimeia, Nina Nastasiuk, de Kherson, na época com 15 anos, era enviada para treinamento militar duas vezes por semana. “Eu não tinha muita escolha.”
Segundo um psicólogo da Save Ukraine, mesmo depois de reunidas com a família, algumas crianças ainda mostram sinais duradouros do trauma causado pela separação que chegam a durar até um ano, incluindo depressão e automutilação. Geralmente, o choque é forte demais para ser verbalizado.
É o caso de Marharyta Matiunina, que tinha oito anos quando foi enviada para um acampamento russo pelas autoridades locais na época da transferência em massa para a Crimeia, enquanto visitava o pai. Sua mãe, Veronika Tsymbolar, ficou quatro meses sem saber o paradeiro da filha. A menina brincou, feliz, com a irmã e o irmão no apartamento em que moram, na região de Mykolaiv o tempo todo da duração da entrevista, mas enterrou a cabeça no sofá quando lhe perguntei como foi o período que passou no acampamento. “Foi como um pesadelo que ela só quer esquecer”, concluiu Tsymbolar.
(Contribuíram para a reportagem da Ucrânia: Daniel Berehulak, Nikita Simonchuk e Diana Poladova)
c. 2024 The New York Times Company
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