O fim da cobrança da passagem no transporte coletivo público urbano avançou em 2023 no país como nunca registrado antes. Desde janeiro, foram 31 municípios que adotaram o sistema pleno, que abrange a tarifa zero no transporte durante todos os dias para toda a população. O ano de 2021 foi o segundo em mais adesões: 15 cidades. No total, o país hoje conta com 94 municípios com Passe Livre pleno. Os dados são do pesquisador Daniel Santini, da USP (Universidade de São Paulo).
São Paulo é o estado com o maior número de municípios com tarifa zero: 29, seguido de Minas Gerais (25), Paraná (11) e Rio de Janeiro (10). O estado paulista também lidera a quantidade de cidades que adotaram o Passe Livre em 2023. Dos 31 municípios que implementaram o sistema neste ano, 10 estão em São Paulo, seguido de Minas Gerais (6), Santa Catarina (5), Rio de Janeiro (5), Paraná (3), Goiás (1) e Rondônia (1).
“A gente está vivendo um momento de expansão da política de tarifa zero no Brasil. 2023 foi o ano em que houve mais adesões, e a gente está vivendo uma tendência muito clara. Existe aí uma multiplicação de experiências, tem o que a gente chama de efeito contágio, ou seja, uma cidade vizinha influencia a outra, que influencia a outra, e a coisa vai se multiplicando”, destaca Santini.
Ele ressalta que o crescimento do número de cidades com tarifa zero no país ocorre dentro de um contexto de queda acentuada no número de passageiros do transporte público e da consequente crise do sistema de financiamento baseado na cobrança de passagens.
Dados da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos) mostram que, no mês de outubro de 2013, foram transportados 398,9 milhões de passageiros no país. Em outubro de 2022, essa quantidade caiu para 226,7 milhões, com redução de 43%.
De acordo com o pesquisador, a situação é um círculo vicioso. Para obter a mesma receita com menos passageiros, é necessário aumentar o valor da passagem; a passagem mais cara, no entanto, faz reduzir o número de passageiros.
“O modelo de financiamento baseado na receita das catracas não se sustenta mais. A gente tem vivido repetidos ciclos de perda de passageiros, e isso tem uma influência direta aí na manutenção e gestão dos sistemas. E a tarifa zero surgiu como uma alternativa, como uma possibilidade, e é uma política especialmente interessante por reunir uma dimensão que é social e ambiental ao mesmo tempo.”
O engenheiro Lúcio Gregori, secretário de Transportes da gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989-1993) e elaborador do Projeto Tarifa Zero em São Paulo, afirma que, com as seguidas elevações nas tarifas do transporte, parte da população deixou de ter condição financeira de se locomover pelo transporte público.
“[A diminuição das viagens é decorrência] de reajustes de tarifas cada vez maiores; por exemplo, em função do aumento do preço de combustíveis. Mas, no geral, a questão é tarifária. Quer dizer, a tarifa foi aumentando numa proporção tal que os usuários foram perdendo as condições de pagá-la e foram deixando de usar o transporte coletivo. Fundamentalmente é isso.”
Das 94 cidades que adotaram o Passe Livre no país, apenas 11 têm mais de 100 mil habitantes, encabeçadas por Caucaia, no Ceará, com população de 355 mil pessoas; pela goiana Luiziânia (209 mil); e pela fluminense Maricá (197 mil). A complexidade dos sistemas de transporte dos municípios mais populosos é apontada como um empecilho para a adoção de tarifa zero nessas localidades.
No entanto, 2023 foi o ano em que mais cidades com mais de 100 mil habitantes adotaram o sistema gratuito para os passageiros, originando uma nova tendência. Foram seis municípios: Luiziânia (GO), com 209 mil habitantes; Ibirité (MG), com 170 mil; São Caetano do Sul (SP), 165 mil; Itapetininga (SP), 157 mil; Balneário Camboriú (SC), 139 mil; e Ituiutaba (MG), 102 mil.
“As cidades com mais de 100 mil habitantes estão adotando a tarifa zero, é parte de uma tendência. Existe agora uma maior percepção de que é possível estruturar tarifa zero também em cidades mais populosas, com redes de transporte público mais complexas”, diz Santini.
“Ao mesmo tempo que é mais desafiador você trabalhar com uma rede mais estruturada, é preciso lembrar também que as cidades mais populosas costumam ter um orçamento maior do que o de cidades menores. Isso também é um potencial”, acrescenta o pesquisador.
São Paulo
A maior cidade do país deu início, no último dia 17, a um sistema parcial de Passe Livre no transporte de ônibus no município, o Programa Domingão Tarifa Zero. A não cobrança das passagens tem validade somente aos domingos e nos feriados do Natal, Ano-Novo e aniversário da cidade (25 de janeiro), para toda a população.
De acordo com dados da prefeitura, o número de passageiros que utilizaram o sistema no primeiro domingo de passe livre cresceu 35% em relação ao dos domingos anteriores: passou de 2,2 milhões para 2,9 milhões. Nas regiões periféricas, o aumento da quantidade de usuários chegou a 38%.
“A cidade de São Paulo adotar a tarifa zero nos domingos é um grande passo. A gente entende, cada vez mais, a mobilidade urbana como uma ferramenta de acesso à cidade. E a tarifa é uma barreira. Mesmo com pouca divulgação, já no primeiro dia, teve 35% a mais. Isso demonstra que, de fato, a cobrança de passagem é uma barreira de acesso à cidade”, destaca a diretora do Instituto Multiplicidade e Mobilidade Urbana, Glaucia Pereira.
Ela ressalva que a decisão, mesmo tomada em véspera de ano eleitoral, vai ao encontro da Política Nacional de Mobilidade Urbana, de 2012, que prevê que o transporte nas cidades deve ser gerido para reduzir desigualdades e diminuir barreiras sociais.
“São Paulo sempre teve medidas eleitoreiras no transporte, só que a medida principal eleitoreira sempre foi fazer asfalto [para o carro]. E esse prefeito vem fazendo asfalto [para o carro]. Mas, mesmo que essa medida [do Passe Livre aos domingos] seja eleitoreira, é a primeira vez que há uma medida eleitoreira de acordo com a política que diz que a mobilidade deve, na verdade, reduzir desigualdades e diminuir as barreiras”, ressalta Pereira.